Alegria

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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

# 071 - SAMIR - Felipe Fortuna, do livro O mundo à solta

Felipe Fortuna é poeta e diplomata. Neste poema do livro O mundo à solta, ele mostra que é capaz de imaginar o inimaginável

SAMIR

Aquele garoto que vê
o mercado ficar cheio
se chama Samir. Ele crê
em Deus de todas as maneiras:
como pássaro brilhante, como água
fresca entre pedras, como o assovio
do vento deserto.
Mas agora desmembrado
e a cabeça confundida aos estilhaços
Samir não vê.
Sobre o mercado
a bomba apontou o inimigo
e levou quem mais podia:
desenrolou-se um tapete até o meio
subitamente a conversa cessou
e os órgãos vitais se espalharam
no bazar já tão repleto,
algumas peças em liquidação.
A mãe de Samir entra
entre ruínas e vê.
Vê fumaça, vê escombros
o apocalipse ali, louvado Alá,
Aos gritos ela vê e vê
que os corpos são dos outros
não são pedaços de Samir.

A perna de Samir
pode estar sob duas colunas
e a mãe não vê
e por isso grita também.
O filho
que corria no mercado
entre algibeiras guitarras narguilés
frutos panos jóias e sedas
paralisou os negócios,
morreu junto com os outros
sem demanda e sem oferta,
sem saber, em meio à guerra,
como e por que barganhar.