Alegria

Alegria

segunda-feira, 31 de março de 2014

# 016 - Instruções de bordo - Ana Cristina Cesar

Poema de hoje # 016
Linda, linda, linda. Talentosa e original. Ana Cristina Cesar resolveu abandonar este mundo aos 31 anos de idade. Seu único livro publicado deixou uma marca na poesia brasileira. Caio Fernando Abreu apresenta assim a sua obra: "Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. Intimidade às vezes atrevida, mas sempre elegantíssima. Intimidade dentro de um espaço literário particular, onde não há diferença entre poesia e prosa, entre dramático e irônico, culto e emocional, cerebral e sensível."
O poema de hoje é assim, um relato sutil e divertido do que parece ter sido um amasso e tanto em pleno vôo:
Intruções de bordo, Ana Cristina Cesar (A teus pés)
(para você, A.C., temerosa, rosa, azul celeste)
Pirataria em pleno ar
A faca nas costelas da aeromoça.
Flocos despencando pelos cantos dos
lábios e casquinhas que suguei atrás
da porta.
Ser a greta,
o garbo,
a eterna liu-chiang dos postais vermelhos.
Latejar os túneis lua azul celestial azul,
Degolar, atemorizar, apertar
o cinto, o senso, a mancha
roxa na coxa: calores lunares,
copas de champã, charutos úmido de
licores chineses nas alturas.
Metálico torpor na barriga
da baleia.
Da cabine o profeta feio,
de bandeja,
Três misses sapatinho fino alto esmalte nau
dos insensatos supervôos
rasantes ao luar
despetaladamente
pelada
pedalar sem cócegas sem súcubos
incomparável poltrona reclinável

# 015 - Currículo - Eduardo Tornaghi

Poema de hoje # 015
Viver de poesia não é pra qualquer um. Cairo Trindade tem uma escola de poesia ( www.cairotrindade.com ) há 15 anos e fomos lá buscar o poema de hoje, feito por um dos seus alunos:
CURRÍCULO
Eduardo Tornaghi
já soquei tijolo já virei concreto
já comi do bom e já pastei sem teto
já passei vazio já sonhei repleto
só me falta chorar pra ser completo
já banquei o bobo me pensando esperto
já fechei a porta e ainda restei aberto
já comprei a banca — já fui objeto
só me falta chorar pra ser completo
só plantei a dor achando ser correto
já tive razão mesmo sem estar certo
já me fiz sublime — já fui abjeto
já clamei por voz no pleno deserto
já me atrapalhei com tudo que é afeto
só me falta chorar pra ser completo

# 014 - Escreva sua história - Claufe Rodrigues

Poema de hoje # 014
Foi uma daquelas noites de sonho. Em um cantinho sagrado do Morro da Conceição, Kyvia Rodrigues regeu com a elegância de sempre um sarau em homenagem ao poeta Claufe Rodrigues. Uma simpatia, também empunhou o violão no estilo bardo-cantor. Conheci a dupla de poetas mais linda deste mundo e de outras galáxias, Cairo Trindade e Denizis Trindade. Ele, transbordando de vida e simpatia. Ela, uma musa zen que no palco encantou e incendiou a plateia. Teve muito mais, mas só quem esteve lá iria acreditar. Foram muitos os poemas. Humildemente selecionei este aqui para o nosso sarau diário:
Escreva sua história, Claufe Rodrigues
Escreva sua história na areia da praia
Para que as ondas a levem através dos sete mares
Até tornar-se lenda na boca de estrelas cadentes.
Conte sua história ao vento.
Cante-a nos bares para os rudes marujos
Aqueles cujos olhos são faróis sujos, sem brilho.
Escreva no asfalto, com sangue,
Grite bem alto a sua história,
Antes que ela seja varrida na manhã seguinte pelos garis.
Abra o peito na direção dos canhões!
Suba nos tanques de Pequim!
Derrube os muros de Berlim!
Destrua as catedrais de Paris!
Defenda sua palavra.
A vida não vale nada
Se você não tem uma boa história para contar.

# 013 - Ultrarrealismo - Carlos Vogt

Poema de hoje # 013
Hoje tem o imperdível sarau do Imaculada Bar-Galeria Rio , sendo assim, vou me poupar e preguiçosamente colocar somente um haicai:
Ultrarrealismo, Carlos Vogt (Boa companhia: haicai)
A vida
limita
a arte.

# 012 - Linhagem - Adélia Prado

Poema de hoje # 012
Para mim Adélia Prado não existe feito gente, é uma entidade pairando. Ela discordaria profundamente, mineira de pés bem plantados no chão da sua terra. Os deuses me concederam a alegria de vê-la de perto e de conversar com ela dois minutinhos a pretexto de pedir um autógrafo. Ela concedeu gentilmente, olho no olho, interessada em saber que qualidade de pessoa era aquela com que proseava. Mas somente ela sabe se apresentar direito, com arte:
Linhagem, Adélia Prado (O coração disparado):
Minha árvore ginecológica
me transmitiu fidalguias,
gestos marmorizáveis:
meu pai, no dia do seu próprio casamento,
largou minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha mãe tinha um vestido só, mas
que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
Meu avô paterno negociava com tomates verdes,
não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,
até o fim de sua vida, os poros pretos de cinza:
'Não me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.'
Meu avô materno teve um pequeno armazém,
uma pedra no rim,
sentiu cólica e frio em demasia,
no cofre de pau guardava queijo e moedas.
Jamais pensaram em escrever um livro.
Todos extremamente pecadores, arrependidos
até a pública confissão de seus pecados
que um deles pronunciou como se fosse todos:
'Todo homem erra. Não adianta dizer eu
porque eu. Todo homem erra.
Quem não errou vai errar.'
Esta sentença não lapidar, porque eivada
dos soluços próprios da hora em que foi chorada,
permaneceu inédita, até que eu,
cuja mãe e avós morreram cedo,
de parto, sem discursar,
a transmitisse a meus futuros,
enormemente admirada
de uma dor tão alta,
de uma dor tão funda,
de uma dor tão bela,
entre tomates verdes e carvão,
bolor de queijo e cólica."

# 011 - Contemplação no banco - Carlos Drummond de Andrade

Poema de hoje # 011 - Enviado por Rafael Zacca
CONTEMPLAÇÃO NO BANCO, Carlos Drummond de Andrade (Claro enigma)
I
O coração pulverizado range
sob o peso nervoso ou retardado ou tímido
que não deixa marca na alameda, mas deixa
essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim,
espiralante.
Tantos pisam este chão que ele talvez
um dia se humanize. E malaxado,
embebido da fluida substância de nossos segredos,
quem sabe a flor que ai se elabora, calcária, sangüínea ?
Ah, não viver para contemplá-la! Contudo,
não é longo mentar uma flor, e permitido
correr por cima do estreito rio presente,
construir de bruma nosso arco-íris.
Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.
Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
e olho para os pés dos homens, e cismo.
Escultura de ar, minhas mãos
te modelam nua e abstrata
para o homem que não serei.
Ele talvez compreenda com todo o corpo,
para além da região minúscula do espírito,
a razão de ser, o ímpeto, a confusa
distribuição, em mim, de seda e péssimo.
II
Nalgum lugar faz-se esse homem…
Contra a vontade dos pais ele nasce,
contra a astúcia da medicina ele cresce,
e ama, contra a amargura da política.
Não lhe convém o débil nome de filho,
pois só a nós mesmos podemos gerar,
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.
Irmão lhe chamaria, mas irmão
por quê, se a vida nova
se nutre de outros sais, que não sabemos?
Ele é seu próprio irmão, no dia vasto,
na vasta integração das formas puras,
sublime arrolamento de contrários
enlaçados por fim.
Meu retrato futuro, como te amo,
e mineralmente te pressinto, e sinto
quanto estás longe de nosso vão desenho
e de nossas roucas onomatopéias…
III
Vejo-te nas ervas pisadas.
O jornal, que aí pousa, mente.
Descubro-te ausente nas esquinas
mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,
contudo nítido, sobre o mar oceano.
Chamar-te visão seria
malconhecer as visões
de que é cheio o mundo
e vazio.
Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares
que se moldam em nós, e a guarda não captura,
e vingam.
Dissolvendo a cortina de palavras,
tua forma abrange a terra e se desata
à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.
Triste é não ter um verso maior que os literários,
é não compor um verso novo, desorbitado,
para envolver tua efígie lunar, ó quimera
que sobes do chão batido e da relva pobre.

# 010 - Ítaca - Konstantinos Kaváfis

Poema de hoje # 010
Um primo meu foi convidado para ser paraninfo de uma turma de História da UFF. O dizer diante de tanta esperança reunida, o que dizer diante de tantos desafios que eles estavam prestes a enfrentar, à hora que a nau se lançasse ao mar. O que dizer?Meu primo era tolo, quase estúpido, mas pediu a ajuda, não dos universitários, e sim de um poeta maravilhoso:
Ítaca, de Konstantinos Kaváfis (1863-1933)
Extraído do livro Poemas. Rio de Janeiro:Nova Fronteira,1990. 3.ed. Tradução de José Paulo Paes
Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

# 009 - Prefácio - Manoel de Barros

Poema de hoje # 009
O sujeito que escreve coisas como "sapo é um pedaço de chão que pula" não precisa de apresentações:
Prefácio, Manoel de Barros (Poesia completa)
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) -
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
dependimentos demais
e tarefas muitas -
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas -
passaram essa tarefa para os poetas

# 008 - Todas as vidas - Cora Coralina

Poema de hoje # 008
Quanta riqueza, quanta humildade...
Todas as vidas, Cora Coralina (Melhores poemas: Cora Coralina)
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim.
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.

# 007 - Explicação ociosa - Lêdo Ivo



Poema de hoje # 007
Simples, bonitinho e inspirador:
Explicação ociosa, de Lêdo Ivo (O aluno relapso/ Afastem-se das hélices)
Não estou no mundo
atrás da verdade
vim buscar a mentira:
o fogo que arde
na eterna pira.

# 006 - Lundu de Pai João - Anônimo

Poema de hoje # 006
LUNDU DE PAI JOÃO (s.XIX): de autoria desconhecida, provavelmente composto na primeira metade do século XIX, após 1837 (pela menção à Casa de Correção), contém uma pesada crítica à sociedade branca. Alguns versos circulam até hoje, reaproveitados em sambas e rodas de partido alto. Infelizmente, ainda hoje muito atual... Notar que as palavras estão grafadas para imitar a fala de um preto velho, de um africano que ainda fala mal a língua portuguesa (à moda de um Preto Velho):
“Quando iô tava na minha tera
Iô chamava capitão
Chega na terra dim baranco
Iô me chama – Pai João
Quando iô tava na minha terá
Comia mia garinha,
Chega na terra dim baranco
Carne seca com farinha.
Quando iô tava na minha tera
Iô chamava generá,
Chega na terra dim baranco
Pega o cêto vai ganhá.
Dizaforo dim baranco
Nó si póri atura
Tá comendo, tá drumindo.
Manda nego trabaiá.
Baranco dize quando more
Jesucrisso que levou,
E o pretinho quando more
Foi cachaça que matou
(...)
Baranco dize – preto fruta,
Preto fruta co rezão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião.
Nosso preto fruta garinha
Fruta saco de fuijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.
Nosso preto quando fruta
Vai pará na coreção,
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão.”

# 005 - El laberinto de la soledad - Eucanaã Ferraz

Poema de hoje # 005
Enviado por Rafael Zacca, este belíssimo poema, cuja leitura mais humanos nos torna:
El laberinto de la soledad, de Eucanaã Ferraz
Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se limitava a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatros, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das luas e lobisomens,
de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem somente para chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassarar parede,
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas discussões das metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável; um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamante isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodka, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando aparecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.

# 004 - Pneumotórax - Manuel Bandeira

Poema de hoje # 004
A história é linda. Depois de ver toda a sua família morrer de tuberculose, aos 18 anos o jovem Manuel Bandeira contrai a doença e recebe praticamente uma sentença de morte. Vai para Petrópolis tentar uma impossível recuperação, mas os médicos não lhe dão esperanças. Dribla a morte, os médicos, a lei das probabilidades e vive até os 80 anos. Talvez os deuses gostem de quem sabe zombar de si próprio, encarando a própria morte com bom humor:
PNEUMOTÓRAX (Manuel Bandeira, Seleta em prosa e verso).
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire
...................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

# 003 - Em todos os jardins - Sophia de Mello Breyner Andresen

Poema de hoje # 003
Para mim a sala de aula é também e principalmente um lugar para brincar com palavras e ideias. Foi assim que respondendo a um aluno imaginário que me perguntava o que vinha depois do doutorado, respondi que depois do doutorado vinha a morte. E que no meu caso eu gostaria de assumir uma forma superior: servindo de adubo a um jardim, seria parte de uma rosa que uma morena (aqui simbolizando todas as mulheres) colocaria junto à orelha até que o vento levasse a flor para outras paragens. Por que não pensar na morte como uma fusão com o universo? Creio que Sophia de Mello Breyner Andresen consegue fazer isso, em um poema publicado na antologia Mar:
EM TODOS OS JARDINS
Em todos os jardins hei de florir
Em todos beberei a lua cheia
Quando no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
a tudo quanto existe hei-me de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

# 002 - Pastilhas brancas - Simone Brantes

Poema de hoje # 002
Ela veio da serra de Friburgo pra desembarcar em Santa Teresa. Adora o Rio mas nem mesmo se esforça para ser carioca, pois se sabe feita de sombra e silêncio. Estudou História, Literatura e Filosofia, pra tudo se acabar em poesia. Simone Brantes abre seu livro Pastilhas Brancas com sensibilidade ímpar e simplicidade comovente:
PASTILHAS BRANCAS
Dormi calma por duas pastilhas brancas embalada,
como quem não tem ocupada a alma por tudo que dói.
Talvez, apartada de mim, minha dor tenha andado por aí perdida
ou tenha ficado o tempo todo aqui bem próxima
estendida sobre a cadeira
como essas roupas que se despem na véspera
e se vestem sem pudor no dia seguinte

# 001 - Na rua mena barreto passa uma avó - Gregório Duvivier

POEMA DE HOJE # 001
Tom Jobim dizia que fazer sucesso no Brasil é um crime imperdoável, uma verdadeira ofensa. O autor do poema que se segue está tendo uma carreira bem sucedida, a meu ver merecidamente, como ator e roteirista.
Sabe aquela hora que você olha para a multidão e pensa: quem são essas pessoas, qual é a história de cada uma, o que elas passaram até agora, o que estão pensando? É o nosso momentinho breve de compaixão universal. Em que entendemos que eles são como nós e nós como eles. O poema que se segue é sobre isso:
na rua mena barreto passa uma avó
que nunca teve netos por um feirante
que não se casou e dá olá de longe
para um apontador do jogo do bicho
que perdeu a mãe de trombose e todos
seguem carregando suas tristeza
dentro de sacolas de plástico
Gregório Duvivier, no livro Ligue os pontos, poemas de amor e big bang