Alegria

Alegria

sexta-feira, 11 de abril de 2014

# 069 - Poema 9 - Madeviaca (Poetas-Santos de Xiva, séculos X-XII) - 31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari

Poema de hoje # 069
Poema 9, Madeviaca (Poetas-Santos de Xiva, séculos X-XII) - 31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari
você pode empalmar
o dinheiro da mão
mas pode confiscar
a glória do corpo?
você pode reduzir
a tiras um véu
mas e a nudez do nada
que me cobre e vela?
para a menina sem-vergonha
que se veste da luz da manhã
do senhor branco-jasmim
para que servem roupa e jóias?

# 068 - Visitas inesperadas - Anna Kaum

Poema de hoje # 068
Não sei quase nada sobre Anna Kaum: não sei onde mora, o que faz da vida ou o que a vida faz com ela. Mas sei que ela é a mais assídua poeta a frequentar este humilde cantinho virtual. Além de sempre postar poesia da melhor qualidade, Anna também contribui com seus poemas. Foi difícil escolher um, pois além de bons são muito diferentes. Mas eu optei por este aqui, pois o bom humor é sempre bem vindo.
Visitas inesperadas, Anna Kaum
Ás vezes,quando a tarde cai e a chuva fina canta no telhado
Solidão vem me visitar
Ela chega mansa,assim como quem não quer nada
Mas num instante está lá,sentada,bem no meio da sala
Pés em cima da mesa,almofadas a lhe acomodar a cabeça
Dependendo do dia,tem a pachorra de me pedir uma coberta
Diz que não gosta de vento encanado.
Fica lá a revirar amores antigos e sussurrar tristezas
Gosta de fotos velhas.Diz que eu menina era mais bonita,pergunta dos parentes mortos,xinga o tempo que passa e nem liga pros nossos sonhos rasgados.
Outro dia cismou que queria ouvir um disco. Onde diabos eu acharia uma vitrola?
Tem cada ideia essa louca
De repente se levanta e dana a andar pelos cômodos vazios da casa
Pode esperar que lá vem choradeira
Quer beber uísque Escocês, reclama que cerveja não combina com ela.
“- Solidão que se preze bebe destilado importado!” Sentencia!
A tarde se cansa,a noite chega e ela lá,com pose de atriz de cinema americano na década de 40
É nessa hora que ela fica pior,piradinha a coitada!
Suspira pela cama vazia e me diz que sou burra,que grito muito e nunca penso antes de falar
“-Vais morrer velha,feia e sozinha!” Berra no espelho
Não aceita,a mandona,que eu ache namorado um saco;é que eles começam lindos,mas acabam sempre uns sapos!!
Depois se acalma e canta ouvindo Maysa.
Pelo menos tem bom gosto.
Teve um dia,acho que já estava meio de pilequinho,que resolveu se emperiquitar toda
Vestido de brilhos,sapato de salto,colares e uma maquiagem toda borrocada.
Essa criatura é doida,eu dei foi risada!!
Andava para lá e para cá, toda trabalhada na perua empoada.
Lá pelo meio da madrugada,já meio sonada,acho que enjoa daquilo tudo e se manda,
tem vezes que sai e nem se despede,quando dou por mim já foi, ganhou a rua. Meio louca,meio santa,lá vai ela porta a fora uivando pra lua...
É bem engraçada essa tal de Solidão,todo mundo reclama,foge,diz que não,mas eu,que perco o amigo mas não a piada, bem que me divirto com a danada!!
Anna Kaum

quarta-feira, 9 de abril de 2014

# 067 - Remora - Rafael Zacca - Blog Canções de Amor e Guerra

Poema de hoje # 067

Rafael Zacca alimenta-se da rica tabelinha entre a História e a Filosofia. É, antes de tudo, poeta:

Remora, Rafael Zacca (Blog Canções de Amor e Guerra)

Retorno, e a morada
é gruta ancestral.

Tudo é começo,
matéria-ruína dos primeiros
versos. Porrete em cabeça
de tigre. Dente de marfim
arando a terra. Pele de bicho
sobre a fala.

(Reverso. Tudo será
o meu último salto.
O dia do degelo, o
lampejo azul da Terra.)

Retorno, e não há casa.
Sou todo morada.

terça-feira, 8 de abril de 2014

# 066 - Já que voltei à Provença (fragmento) - Vidal (Trovador sécs. XII e XIII) - Tradução de Décio Pignatari

Poema de hoje # 066

Já que voltei à Provença (fragmento) - Vidal (Trovador sécs. XII e XIII) (31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari)

Já que voltei à Provença,
Agrado ao seu coração:
Faço esta alegre canção,
Alegre, por recompensa,
Pois que servir e louvar
As graças de um bom senhor
É dar valor ao valor
E algum valor esperar,
Por valoroso esforçar.

Sem pecar - fiz penitência;
Sem errar - achei perdão
E, no nada - inspiração;
No rancor - benevolência,
Alegria - no chorar,
No amor - doce sabor
E, no medo, destemor.
Por perder, eu sei ganhar
E, vencido, dominar.

domingo, 6 de abril de 2014

# 065 - ando pisando sobre minha sombra - Annita Costa Malufe

Poema de hoje # 065

ando pisando sobre minha sombra, Annita Costa Malufe  (Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea)

ando pisando sobre minha sombra
debaixo dela
são as pedras que caminham
as pedras em correnteza
algo que desliza sob meus pés
são as pedras que caminham e não eu
não sou eu quem estou aqui não sou
quem desliza pelas calçadas repletas
não sou exatamente o que poderia ser
debaixo dos pés são as pedras que caminham
que traçam o caminho tênue esgarçado
em que o dia se esgarça o sol se esgarça
aquece a calçada queima as pedras da calçada
ando pisando sobre minha sombra o sol por detrás
pisando em um esquecimento qualquer
e debaixo de minha sombra são as pedras
que escorrem deslizam traçam uma correnteza
na qual sigo em sentido contrário
digo "vou" mas não sou eu quem vou
não sou exatamente este corpo que pisa
que projeta esta sombra não sou exatamente o que
se supõe momentaneamente que seja

sábado, 5 de abril de 2014

# 064 (Abrigo) - Donizete Galvão

Poema de hoje # 064

(Abrigo) - Donizete Galvão (Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea)

Há uma casa,
como casca,
crosta presa
nas costas.
Cicatriz de um
ninho quente,
vermelho de
fogão de lenha,
infância
onde o homem
já não cabe.

Há uma casa
branca como
a cal, vazia,
imaterial,
que flutua
no espaço,
onde o corpo
busca guarida
quando a vida
já perdeu
o seu sal.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

# 063 - Poesia e realidade - Fabrício Corsaletti

Poema de hoje # 063
Poesia e realidade, Fabrício Corsaletti (Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea)
o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos -
minha vida será triste
perderei os meus amigos
venderei minha família
por um copo de cachaça
vagarei pelas cidades
pedindo esmola e perdão
esquecerei minha infância
não lembrarei o meu nome
morrerei como indigente
não serei reconhecido
meu corpo cheio de escaras
será jogado no mar -
o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos
TODOS os poemas anteriores podem ser encontrados no bloguinho:http://poemadehoje.blogspot.com.br/

quinta-feira, 3 de abril de 2014

# 062 - O próprio ser eu canto - Walt Whitman

Poema de hoje # 062
Para que eu vou tentar apresentar o Walt Whitman se posso ter o Leminski fazendo isso por mim:
"Toda revolução digna desse nome produz seu grande poeta.
'Antena da raça', o poeta capta, nos tempos de comoção social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes transformações coletivas, em seu momento agudo, revolucionário ou insurrecional. Assim, se Maiakovski é o poeta da Revolução Russa, não é exagero dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes do seu nascimento. Da revolução que expressa, a poesia de Whitman herdou todos os traços fundamentais: o libertarismo individualista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do capitalismo na América, o otimismo ativista de um povo de vikings, a vertigem da abertura de inimaginadas fronteiras geográficas, econômicas e técnicas. E também emocionais, existenciais e pessoais. 'This is a big country.' 'This is a free country.' Nessas frases, que decoramos em filmes de faroeste, condensa-se o essencial da ideologia que informa os versos do pai do verso livre, o pai do verso louco, o pai do verso novo. (...) Whitman libertou o verso dos duros deveres da métrica, convencionais como os aparatosos cerimoniais das cortes do Velho Mundo.
Whitman, a rigor o primeiro poeta a fazer versos livres, é o libertarismo da jovem república, fronteira aberta a oeste, projetado em plano formal."
E agora o próprio Whitman se apresenta:
O próprio ser eu canto, Walt Whitman (tradução de Geir Campos), Folhas das folhas de relva
O próprio ser eu canto:
canto a pessoa em si, em separado
- embora use a palavra Democracia
e a expressão Massa.
Eu canto o Corpo
da cabeça aos pés:
nem só o cérebro
nem só a fisionomia
tem valor para a Musa
- digo que a Forma completa
é muito mais valiosa,
e tanto a Fêmea quanto o Macho
eu canto.
A Vida plena de paixão,
força e pulsão,
preparada para as ações mais livres
com suas leis divinas
- o Homem Moderno
eu canto.
TODOS os poemas anteriores podem ser encontrados no bloguinho:http://poemadehoje.blogspot.com.br/

# 061 - Fome - Arthur Rimbaud

Poema de hoje # 061
Nosso Vinicius dizia que Rimbaud (1854-1891) era tão simplesmente "o maior de todos". Mesmo dentre os poetas, sempre pouco lineares, teve uma trajetória conturbada e enigmática: o romance com Verlaine, intenso e conflituoso, o abandono da poesia ainda na juventude, a vida de traficante de armas na África e a morte aos 37 anos. O pequeno poema abaixo foi retirado de sua última obra, Uma temporada no Inferno, composta quando ele tinha 19 anos:
FOME, Arthur Rimbaud (Uma temporada no Inferno)
Se tenho gosto, é quase só
pela terra e pelas pedras.
Meu almoço é sempre o ar,
a rocha, o carvão, o ferro.
Minhas fomes girem, girem,
atravessem os trigais,
atraiam o alegre veneno
da flor de pau.
Comam os seixos quebráveis,
as velhas pedras das igrejas,
os biscoitos dos naufrágios,
os pães jogados nas cinzas.

# 060 - Trecho de Pantera no porão - Amós Oz (tradução de Milton Lando e Isa Mara Lando) - enviado por André Argolo

# 060 
A rigor, não é poesia. Mas de tão lírica, decidi que ofereceria como poema do dia:
"Bem lá dentro, no chão da barriga existe um poço que a ciência ainda não descobriu, e a esse poço acorre todo o sangue que foge da cabeça, do coração, dos joelhos, e lá, no fundo do poço, o sangue se torna um oceano, e ruge como o oceano."
trecho de Pantera no porão, de Amós Oz, com tradução de Milton Lando e Isa Mara Lando (Companhia das Letras, 1999)

# 059 - Tiranias - Rui Proença



Poema de hoje # 059
Tiranias, Rui Proença (Traçados diversos, uma antologia de poesia contemporânea)
antigamente
diziam: cuidado,
as paredes têm ouvidos
então
falávamos baixo
nos policiávamos
hoje
as coisas mudaram
os ouvidos têm paredes
de nada
adianta
gritar

# 058 - Sábado, Estação da Luz - Heitor Ferraz Melo

Poema de hoje # 058
Aqui fica minha humilde homenagem a São Paulo, a quem devo tanto: deliciosas dias de debate e estudo na PG em Antropologia da USP, minha amada mestra Maria Lucia Montes, a pizzaria L'Speranza, meu amigo André Andre Argolo, um dia inesquecível na Rua Javari e minha afilhadinha querida, paulistana de nascimento mas que leva o mar no nome.
Sábado, Estação da Luz, Heitor Ferraz Melo (Traçados diversos, uma antologia de poesia contemporânea)
Tinha visto as colunas de ferro da estação
a passarela de ferro da estação
o rosto de ferro da estação
as pernas de ferro do homem
que rolava pela estação numa cadeira de ferro
Sim, precisava gravar as vozes de ferro da estação
a ladainha da mulher de ferro
que pedia dinheiro dentro do trem
quando o trem saía da estação
A mulher, o vendedor de termômetros digitais
o homem que trazia uma engenhoca chinesa
que era lanterna e isqueiro ao mesmo tempo
Pareciam todos atores silenciosos
que só surgiam para o palco
quando o trem apitava e saía da estação
a meia contra arranhões
contra quedas do aparelho,
o limpador de línguas
os pés deformados, elefantíase
termômetro é cinco digital
Tinha de registrar a entonação
a dramatização das vozes de ferro da estação
o silêncio dentro da estação
antes do trem começar a apitar
Selecionar cinco trechos para depois fundir
Saia daquele lugar, dizia
muda sua vida, vai para a Igreja
ninguém precisa passar por essa humilhação
O trem que saía da boca de ferro da estação
a boca de ferro da estação
os trens mortos de ferro e ferrugem
nos abandonados acostamentos da estação,
em pés de elefantíase, deus te abençoe e te dê saúde
Saúde de ferro na estação
Tudo é uma questão de estocagem
Na estação a morte de todos apita
o apito é de ferro na estação

# 057 - Três assobios - Fernando Paixão

Poema de hoje # 057
Três assobios, Fernando Paixão (Traçados diversos, uma antologia de poesia contemporânea)
Atento às linhas do horizonte
ao alfabeto casual das árvores
o camponês lê as ovelhas
arrancando vírgulas da tarde.
Um pássaro de papel
sofre no canto do quintal.
Malfeitas as dobraduras
asas não levam a nada.
A lavadeira aproveita
a tarde vagarosa e triste
com as mãos na água:
lava suas mágoas.

# 056 - Fragmento do mesmo - Giacomo Leopardi

Poema de hoje (de ontem rs) # 056
Fragmento do mesmo, Giacomo Leopardi (1798-1837) (Cinco séculos de poesia - Alexei Bueno)
Humana coisa pouco tempo dura,
É um dito perfeito
Do ancião de Quios,
Folha e home, a Natura
Trata com semelhança.
Mas esta voz no poeito
Pouquíssimos recolhem. À esperança,
Filha do tolo ardor,
Todos rendem seu preito.
Enquanto é rubra a flor
De nossa idade acerba,
A alma oca e soberba
Cem doces pensamentos cria em vão,
Morte e velhice ignora; nada adverso
Supõe no corpo o homem galhardo e são
Mas louco é quem não vê
A asa veloz da juventude voar
E como junto ao berço
A pira e a urna estão.
Tu, já pronto a pisares
No fatal precipício
Dos plutônicos lares,
Do que hoje te extasia
Goza a breve alegria.

# 055 - Soneto 19 - William Shakespeare

Poema de hoje # 055
Placar até agora: Shakespeare 1, Tempo 0. Neste soneto ele consegue perfeitamente seu objetivo de eternizar a beleza do seu amor.

SONETO 19, William Shakespeare (154 Sonetos)
Tempo voraz, corta as garras do leão,
E faze a terra devorar sua doce prole;
Arranca os dentes afiados da feroz mandíbula do tigre,
E queima a eterna fênix em seu sangue;

Alegra e entristece as estações enquanto corres,
E ao vasto mundo e todos os seus gozos passageiros,
Faze aquilo que quiseres, Tempo fugaz;
Mas proíbo-te um crime ainda mais hediondo:

Ah, não marques com tuas horas a bela fronte do meu amor,
Nem traces ali as linhas com tua arcaica pena;
Permite que ele siga teu curso, imaculado,

Levado pela beleza que a todos sustém.
Embora sejas mau, velho Tempo, e apesar de teus erros
Meu amor permanecerá jovem em meus versos.

# 054 - Versos áureos - Gérard de Nerval

Poema de hoje # 054
Gérard de Nerval tinha uma sólida formação e grande interesse pelos clássicos. Aos 33 anos começou a apresentar sinais de esquizofrenia. Viajou por toda a Europa e também pelo Oriente, interessado em cultos esotéricos. Depois de anos sofrendo com a doença, aos 47 anos enforca-se em um beco de Paris, onde nascera. Alguns poemas feitos em fase esquizofrênica e até mesmo de loucura alteram nomes de deuses e figuras mitológicas e produzem "genealogias delirantes" que acabam por "insuflar algo de novo e único na poesia francesa" do século XIX (Wikipedia e Alexei Bueno, Cinco séculos de poesia)
Versos áureos, Gérard de Nerval (1808-1855) (Cinco séculos de poesia - Alexei Bueno)

Mas como! Tudo é sensível!
Pitágoras
Oh! homem pensador, julgas que é em ti somente
Que há razão neste mundo onde em tudo arfa a vida?
Das forças que tu tens tua vontade é servida,
Mas dos conselhos teus o universo está ausente.
Respeita no animal um espírito agente:
Cada flor é uma alma à Natureza erguida;
Um mistério de amor no metal tem guarida;
'Tudo é sensível!' Tudo em teu ser é potente.
Teme, no muro cego, um olho que te espia:
Pois mesmo na matéria um verbo está sepulto...
Não a faças servir a alguma função ímpia!
No ser obscuro às vezes mora um Deus oculto;
E como olho a nascer por pálpebras coberto,
Nas pedras cresce um puro espírito desperto!

# 053 - Que país é este (fragmento) - Affonso Romano de Sant'Anna

Poucas vezes um poema explicou tão bem um país e poucas vezes um poeta explicou tão bem o seu poema... (também o vídeo é do poeta Andre Argolo ). Excepcionalmente, não colocamos o poema todo, apenas as duas primeiras partes das sete de que ele se compõe.
Poema de hoje # 053, Que país é este? [1980], Affonso Romano de Sant'Anna (Que país é este?)
1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno "Avante"
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
- nos trai
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral
este é um país de cínicos em geral
este é um país de civis e generais.
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come e
nossa sede canina,
e a esperança que emparedam
a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e a nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
- a cor da noite é obsclara
e a claridez, vespertina.

# 052 - O Poema - Mário Quintana

Poema de hoje # 052
Estava faltando ele...
O Poema, Mário Quintana (Nova Antologia Poética)
Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página
ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu
nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito
e o mistério da vida...

# 051 - A história de Abílio e seu cachorro Jupi - Patativa do Assaré

Poema de hoje # 051
Patativa do Assaré (1909-2002) é um patrimônio do Ceará, do Brasil e do mundo. É dele o primeiro cordel que temos a honra de publicar neste humilde espaço virtual e como muitos é a recriação de um tema ibérico, um verdadeiro conto em versos:
A história de Abílio e seu cachorro Jupi, Patativa do Assaré (Patativa do Assaré, Cordéis)
Vizinho a uma cidade
residia um cidadão
de alma fervorosa e justa
e um sincero coração
tendo 3 filhos consigo
Abílio, Grigório e João
Esse senhor de quem falo
chamava-se Benvenuto
votava ódio a quem fosse
ladrão, traiçoeiro e bruto
conservava no seu peito
um coração impoluto
Porém este velho mundo
é uma variedade
às vezes um senhor justo
de tanta moralidade
cria filhos desordeiros
tipos de perversidade
Foi assim que Benvenuto
bom e digno de atenção
via com grande pesar
dois filhos, Grigório e João,
praticando os negros dramas
da vala da perdição
Em qualquer parte que iam
deixavam inimizade
eram ambos odiados
da alta sociedade
foram presos muitas vezes
na cadeia da cidade
Porém como Benvenuto
era bondoso e cortês
e todos apreciavam
aquele bom camponês
depressa Grigório e João
se livravam do xadrez
O bom velho com rigor
sempre o tinha castigado
mas nunca pôde dar jeito
bem nos ensina um ditado
que quem nasce pra ser torto
tem que morrer envergado
Abílio era o caçula
tinha perfeitos sinais
em bondade e palidez
crescia de mais a mais
observando com zelo
os conselhos paternais
Cumpridor dos seus deveres
era sério e resoluto
rendia ao seu velho pai
de amor um grande tributo
era o prazer da velhice
do ancião Benvenuto
O padre da freguesia
era de Abílio o padrinho
um dia lhe fez presente
dum mimoso cachorrinho
dali em diante o menino
nunca mais andou sozinho
Esse belo animalzinho
tinha o nome de Jupi
aonde Abílio estivesse
ele se encontrava ali
como quem diz: és meu dono
não me apartarei de ti
Tinha o corpo adelgaçado
alvo da cor do arminho
e preto como veludo
dos olhos para o focinho
era o orgulho de Abílio
o tratava com carinho
Jupi às vezes que andava
ao lado dessa criança
pra filar um animal
bastava gritar-lhe: avança!
Era daquele menino
um guarda de confiança
Benvenuto se achava
muito avançado na idade
sentia muito em deixar
Abílio na orfandade
no poder dos dois irmãos
dois tipos sem piedade
Os quais com raiva de Abílio
ocultamente diziam
que quando o velho morresse
a ele maltratariam
por não guardar o segredo
dos danos que eles faziam
O velho um dia os chamou
e disse mui comovido:
meus filhos, por vossas causas
eu muito tenho sofrido
pretendo fazer a ambos
meu derradeiro pedido
– Pois vejo que agora mesmo
minha existência termino
deixando entregue a vocês
Abílio tão pequenino
peço que na minha ausência
tenham dó deste menino
– Entre as privações da vida
não deixem ele sofrer
eis o meu último pedido
nada mais tenho a dizer
guardem as últimas palavras
de um velho que vai morrer
Benvenuto assim dizia
o corpo todo tremendo
e pela face enrugada
sentidas lágrimas descendo
como a pessoa que passa
a vida inteira sofrendo
Tanto João como Grigório
ouviram com paciência
sem responderem palavra
com muita calma e prudência
porém nos olhos mostravam
a vil desobediência
Depois de dez ou mais dias
deste conselho de amor
Benvenuto agonizando
no triste leito da dor
se despedindo dos filhos
deu a alma ao Criador
Partiu desta terra ingrata
para a bem-aventurança
sua morte foi chorada
pela boa vizinhança
deixando entre os amigos
uma saudosa lembrança
Nesse dia o pobre Abílio
bastante desconsolado
chorava amargosamente
com o caixão abraçado
vendo partir para sempre
o seu pai idolatrado
João e Grigório choravam
também nesse triste dia
e passaram alguns meses
com certa melancolia
mas depois continuaram
na mesma vida de orgia
A toda sorte de vícios
viviam sempre aliados
trilhando a senda do crime
do bom caminho afastados
não havia confiança
naqueles degenerados
Saíam ambos de casa
deixando o menino ali
sem um ente piedoso
para consolar a si
só tendo por companhia
o seu cachorro Jupi
Esse fiel companheiro
não o deixava um momento
lhe festejava sincero
cheio de contentamento
pois era o único consolo
do seu grande sofrimento
Onde quer que Abílio fosse
sempre ele o acompanhava
passava o dia ao seu lado
dele não se separava
e a noite rondando o prédio
raivosamente ladrava
Grigório uma certa vez
quis a Abílio Açoitar
mas Jupi tomou-lhe a frente
e começou a rosnar
só não o estrangulou
por Abílio não deixar
Grigório cheio de raiva
com seu instinto brutal
jurou dar fim ao menino
duma maneira fatal
e com um tiro certeiro
matar aquele animal
Convidou um dia João
o seu único camarada
pra nas matas com Abílio
fingirem uma caçada
e darem fim ao pequeno
por meio duma cilada
João disse: eu aceito
de muito boa vontade
apesar de praticarmos
um ato de crueldade
mas precisamos viver
com mais franca liberdade
– Precisa grande cuidado
para prendermos Jupi
e vamos botar Abílio
muito distante daqui
entre a onça e a pantera
o lobo e o javali
Ele ficando nas matas
nunca mais há de voltar
e só assim poderemos
alguma coisa roubar
qu’ele quer ser muito justo
pode nos denunciar
Grigório muito contente
a Abílio convidou
para aquela tal caçada
ele respondeu-lhe: vou
porém daquele carinho
um pouco desconfiou
Porque Grigório com ele
só falava aborrecido
depois do funesto dia
que o seu pai tinha morrido
umas frases amorosas
não tinha mais recebido
Partiram no outro dia
Abílio ia na frente
em direção da montanha
coitado, tão inocente
e Jupi ficou atado
uivando horrorosamente
O menino caminhava
um tanto desconfiado
porque com os dois irmãos
ele nunca tinha andado
seu coração palpitava
um infeliz resultado
Os dois irmãos conversavam
ao pequenino entretendo
por entre a mata frondosa
diversas voltas fazendo
tirando o mel das abelhas
e a ele oferecendo
Ele sem saber de nada
comeu mel até fartar
mas depois de alguns minutos
começou a se queixar
duma sede insaciável
de não poder suportar
Aqueles dois traiçoeiros
de ingratidão sem desconte
lhe disseram: você fique
aqui em cima do monte
que vamos ali no vale
procurarmos uma fonte
O pequeno obedeceu
com os irmãos tinham dito
ali os dois se afastaram
deixando o menino aflito
com sede e sem companhia
naquele monte esquisito
Quando chegaram em casa
foram com muito cuidado
matar o pobre cachorro
temendo um mal resultado
mas não encontraram ele
onde se achava amarrado
– Vamos matar o cachorro:
um para o outro dizia
mas só metade da corda
no dito lugar havia
e o rastro de Jupi
para a montanha seguia
Abílio em cima do monte
não vendo ninguém chegar
de vez em quando gritava
vem, Grigório, me buscar!
Mas, coitado, não ouvia
ninguém resposta lhe dar
Ele tornava a gritar:
anda João, meu irmãozinho,
tira-me deste degredo
não deixe-me aqui sozinho
senão eu morro e não volto
porque não sei do caminho!
Andou mais de duas horas
chorando muito abatido
mas depois reconheceu
que os irmãos tinham fugido
deixando ele abandonado
naquelas brenhas perdido
Ele pensando lembrou-se
que seu velho pai dizia
que se entre as crises da sorte
ele se encontrasse um dia
recorresse à proteção
da Virgem Santa Maria
Ali mesmo ajoelhou-se
fazendo o sinal da cruz
e pediu o patrocínio
da santa Mãe de Jesus
para naquele abandono
mandar-lhe um foco de luz
E quando Abílio estava
com aflição a rezar
dentro da mata ouviu
alguma cousa pisar
pensou que já fosse um tigre
que vinha lhe devorar
Então olhou para trás
quase morto de assombrado
depois redobrou de alegre
ficou bastante animado
era o seu fiel cachorro
que vinha muito apressado
Quando viu qu’era o cachorro
afugentou-se o pavor
esse o festejava alegre
com testemunha de amor
depois escaramuçava
em roda do seu senhor
Abílio com muito gosto
deu graças à Virgem Pura
e disse: agora Jupi
dentro desta mata escura
tu serás o companheiro
desta minha desventura
Caminhou sem direção
ao lado do seu cachorro
sobre o leito dum regato
rodeando um grande morro
encomendando-se à Virgem
Mãe do Perpétuo Socorro
Com 3 horas mais ou menos
de caminhada penosa
chegou ao pé dum rochedo
de altura vertiginosa
onde encontrou uma fonte
d’água mui deliciosa
Abílio estancou a sede
que estava lhe devorando
e sentou-se em uma pedra
meditativo pensando
onde passaria a noite
que vinha se aproximando
Ao lado do seu cachorro
sua fiel companhia
deitou-se sobre uma lage
que junto da fonte havia
tomado pela fadiga
daquele inditoso dia
Só às três da madrugada
foi que despertou Abílio
sobre aquela dura pedra
que tinha por domicílio
onde só a Providência
podia dar-lhe um auxílio
Demorou mais duas horas
quando o galo de campina
saudou a bela aurora
de luz prateada e fina
ele fez ajoelhado
a oração matutina
Abílio depois da prece
chamou por seu cão Jupi
e examinando a fonte
em derredor de persi
viu que de flores silvestres
um jardim havia ali
Admirou-se de ver
ao lado daquele outeiro
aquelas plantas nascidas
semelhante a um canteiro
como se fossem plantadas
pelas mãos dum jardineiro
Depois achou no rochedo
uma medonha abertura
que continha para cima
vinte e dois palmos de altura
e tinha no rés do chão
quatro metros de largura
Tinha um amplo pavimento
aquela grande caverna
com detalhes primorosos
feitos pela mão eterna
semelhantes às obras primas
da arquitetura moderna
Abílio disse consigo:
que obra bem acabada
de hoje em diante esta caverna
há de ser minha morada
vou descontar nela os gozos
da minha vida passada
Então ficou habitando
ali naquele rochedo
passeava pelas matas
e se recolhia cedo
presente ao seu bom cachorro
nada lhe causava medo
Saía todos os dias
por dentro da mata bruta
aqui, subindo um outeiro
ali, descendo uma gruta
tirando o mel das abelhas
e colhendo alguma fruta
A tardinha ele voltava
da sua feliz caçada
tomava um banho na fonte
e entrava em sua morada
se agasalhava no centro
Jupi guardava a entrada
Muitas vezes, alta noite
Abílio ouvia ladrar
bolar pedras do rochedo
ranger dente e avançar
era o seu velho cachorro
com as feras a lutar
Pois ali bebia a onça
o lobo e o javali
mas ele continuando
a sua morada ali
as feras se retiravam
com medo do cão Jupi
Abílio ficou passando
a sua existência assim
habitando na caverna
e zelando o seu jardim
dizia ele: esta vida
lá um dia há de ter fim
De armamento ele só tinha
um canivete estimado
tendo cabo precioso
de pérola todo engastado
uma saudosa lembrança
que seu pai lhe tinha dado
Daquela pequena arma
Abílio se utilizava
para fazer suas roupas
às vezes que precisava
porque a pele da corça
era o que o pobre trajava
Quando o cachorro sentia
o desejo de comer
matava uma grande corça
comia carne a valer
e Abílio Guardava a pela
pra suas roupas fazer
Fazia mais de três anos
que aquele pobre inditoso
habitava aquelas brenhas
num estado lastimoso
era de Nossa Senhora
um devoto fervoroso
Ele sabia que a Virgem
com o seu poder clemente
domina em todo lugar
protege a qualquer vivente
não despreza o desgraçado
quando padece inocente
E assim sucessivamente
ia o tempo se passando
dezesseis anos de idade
ele estava completando
seis dos quais tinha passado
naquela cova habitando
Um certo dia bem cedo
ele despertou contente
achando o monte mais belo
a fonte mais excelente
um lindo sol de alegria
brilhava no Oriente
Uma saudosa canção
a passarada entoava
o belo jardim silvestre
doce perfume exalava
e o colibri entre as flores
esvoaçando piava
Em tudo Abílio notava
um lampejo de esperança
sobre o leito do regato
a fonte corria mansa
tudo era paz e alegria
vida, sossego e bonança
Chamou ele o seu cachorro
e saiu mui jubiloso
pela mata a caçar frutos
cheio de prazer e gozo
semelhante a quem se julga
rico, feliz e ditoso
A tardinha ele voltou
de frutos bem carregado
assim que entrou na caverna
ficou bastante pasmado
encontrou nela um letreiro
na dura rocha gravado
Aquelas letras visíveis
gravadas na pedra dura
terminavam a narração
sem deixar assinatura
disse Abílio: é um milagre
de Maria a Virgem Pura
Diz o dito letreiro:
Abílio, deixa esta vida
onde sofreste bastante
sem conforto e sem guarida
já é tempo de gozares
a liberdade querida
Chama o teu fiel cachorro
e depois da madrugada
parte em direção do norte
por esta mata fechada
que daqui a oito léguas
encontrarás uma estrada
Chegando na dita estrada
ao mesmo rumo caminha
até encontrar um prédio
onde habitava uma velhinha
a quem servirá de guia
pois ela mora sozinha
Aí nesse dito prédio
gozarás vida folgada
com a proteção divina
não há de lhe faltar
esquecendo os sofrimentos
da desventura passada
Abílio leu muitas vezes
com atenção e prudência
e achou que era um milagre
da Divina Providência
que lhe mandava deixar
aquela tal residência
Chamou pelo seu cachorro
e de manhã já marcava
para direção do norte
como o letreiro mandava
deixando aquela caverna
coito da pantera brava
Chegando ele na estrada
ficou com grande alegria
andando mais meia légua
viu ele uma moradia
era a casa da velhinha
como o letreiro dizia
Avistando a grande casa
tornou-se muito acanhado
em chegar naquele prédio
daquela forma trajado
porque a roupa do pobre
era pele de veado
mas apesar de acanhado
começou ele a pensar
a velha dona da casa
não há de me censurar
da pouca sorte de um ente
ninguém pode ignorar
Chegou na porta e falou
ficou em pé no terreiro
a velha saiu na porta
com um riso prazenteiro
e vendo ele assim trajado
pensou que fosse um vaqueiro
Ele pediu-lhe um agasalho
a velha disse que sim
então Abílio contou-lhe
tudo tim-tim por tim-tim
e ela ouviu comovida
sua história até o fim
Disse a velha: tem quem diga
que o senhor é uma tolice
mas esta noite eu sonhei
no sonho o anjo me disse
qu’eu teria um grande amparo
no fim da minha velhice
Passei a noite sonhando
então no meu sonho eu via
um moço como você
chegar nessa moradia
para no fim dos meus anos
servir-me de companhia
– Já vê que esse meu sonho
é uma realidade
gozarei paz e sossego
na minha avançada idade
e tu serás o herdeiro
da minha propriedade
Depois de muito falarem
a velha por sua vez
deixou Abílio na sala
e saiu com rapidez
trouxe um bonito uniforme
e um presente lhe fez
Dizendo: neste uniforme
grande saudade se encerra
era dum filho que eu tinha
e foi morto em uma guerra
como um soldado brioso
defendendo a nossa terra
Hoje te faço presente
deste tesouro adorado
dando mil graças aos céus
por Jesus ter te enviado
em lugar de meu bom filho
que morreu sendo soldado
Abílio sacudiu fora
o seu traje extravagante
trajando o belo uniforme
tornou-se muito elegante
e não lhe faltou mais nada
daquele dia por diante
Trajava e comia bem
dormia em paz o seu sono
tudo quanto era da velha
que se achava em abandono
desfrutava sem receio
como seu legítimo dono
Pois aquela velha tinha
herdado do seu marido
bons terrenos e dinheiro
com direito garantido
e só tinha um filho único
o qual já tinha morrido
Dinheiro e propriedade
gado, terra e animais
ela deu tudo a Abílio
com documentos legais
dizendo: no fim da vida
disto eu não preciso mais
Dizia ela: netinho
você deve procurar
uma moça competente
e com ela se casar
pois vejo que brevemente
vem a morte me levar
E você agora mesmo
fazendo um bom casamento
com minha separação
sofrerá menos tormento
ficando uma zeladora
deste tem bom aposento
Dali distante 3 léguas
em uma pobre choupana
residiam 3 donzelas
numa pobreza tirana
que só tinham o auxílio
da proteção soberana
A primeira, Dorotéia
era séria e caprichosa
a segunda, Madalena
também distinta e formosa
e tinha a bela caçula
chamada Maria Rosa
Com os conselhos da velha
Ablílio teve lembrança
da linda Maria Rosa
aquela meiga criança
com o seu riso atraente
e o seu olhar de esperança
Pensou em casar com ela
pois grande esmola fazia
tirando aquela donzela
da pobreza em que vivia
e trazendo as outras duas
para a sua companhia
Consultando com a velha
ela concordou também
dizendo: aquelas donzelas
em bondade vão além
filhas de um justo casal
duma família de bem
Abílio então desposou
a linda Maria Rosa
tirando as duas cunhadas
da pobreza lastimosa
a velha as tratava bem
de uma forma carinhosa
Com um ano e alguns meses
de tão sincera amizade
a velha caiu doente
duma certa enfermidade
indo dormir para sempre
o sono da eternidade
Abílio e Maria Rosa
Dorotéia e Madalena
vendo aquela benfeitora
deixar a vida terrena
trajaram luto penado
todos chorando com pena
Ficaram ali os quatro
na união fraternal
Abílio sempre em progresso
estava rico afinal
já era possuidor
dum imenso cabedal
Ele zelava a mulher
como bondoso senhor
e era para as cunhadas
um sincero protetor
reinava naquela casa
um ambiente de amor
O seu cachorro Jupi
aquele bom companheiro
apesar de muito velho
guardava bem o terreiro
maracajás e raposas
não boliam no poleiro
Mas infelizmente o cão
certo dia entristeceu
e daquele dia em diante
não comeu mais nem bebeu
apesar de muito trato
o velho Jupi morreu
Abílio enterrou o cão
dentro dum lindo quintal
para os corvos não comerem
aquele belo animal
que tinha lhe dado as provas
de um bom amigo leal
Já decorriam 3 anos
que Abílio havia casado
seu progresso na riqueza
cada vez mais aumentado
já se encontrava riquíssimo
em dinheiro, terra e gado
Estando ele um certo dia
na mais justa intimidade
conversando na calçada
de sua propriedade
chegaram ali dois pobres
implorando caridade
Aqueles dois andrajosos
que naquele estado implório
andavam pedindo esmolas
longe do seu território
eram João irmão de Abílio
e o outro era Grigório
Abílio os reconheceu
mas não deu demonstração
ofereceu agasalho
com a maior atenção
sentindo na sua alma
um choque de compaixão
Mandou fazer um jantar
e os convidou para a mesa
conversando alegremente
com muita delicadeza
vendo naqueles semblantes
o retrato da tristeza
Abílio disse ao mais velho
contristado e pesaroso:
desculpem minha pergunta
porém estou ansioso
pra saber aonde vão
neste estado lastimoso
Disse um: eu sou um ente
ingrato, péssimo e ruim
escute que vou contar-lhe
minha história até o fim;
sentou-se em uma cadeira
e foi começando assim:
– Nós somos dois desgraçados
não sabemos aonde vamos
mendigando o pão dos pobres
sem destino viajamos
pagando assim desta forma
um crime que praticamos
O crime foi o seguinte:
matamos um nosso irmão
o qual chamava-se Abílio
e tinha um bom coração
desde aquele dia veio
contra nós a maldição
Somos filhos dum senhor
que há muitos anos morreu
que por qualquer injustiça
castigava um filho seu
e durante a sua vida
muitos conselhos nos deu
Quando morreu o nosso pai
por causa da fatalidade
veio cair sobre nós
o peso da orfandade
ficando o pequeno Abílio
só com dez anos de idade
Ficou a pobre criança
sem conforto e sem carinho
pois nós o abandonamos
deixando-o em casa sozinho
até que um dia pensamos
em lhe dar um descaminho
Fingimos uma caçada
e assim barbaramente
bem no centro duma mata
deixamos o inocente
entregue à onça e ao lobo
à pantera e à serpente
Nós voltamos para casa
um para o outro a dizer:
agora sim, poderemos
bem descansados viver
sem um ente em nossa casa
para nos interromper
Abílio era muito belo
e por demais conhecido
até mesmo na cidade
o menino era querido
souberam logo que o mesmo
tinha desaparecido
Fomos depressa chamados
a fim de comparecermos
perante ao juiz de órfãos
alguma cousa dizermos
que com frases rigorosas
nos tratou com estes termos
Digam-me, o menino Abílio
onde é que está encerrado
que por lá diversas vezes
já tem sido procurado?
E apesar das diligências
não foi ainda encontrado
Devido a isto, vocês
estão em grande perigo
não tem a quem se queixar
este negócio é comigo
ou dão conta do menino
ou vão morrer no castigo
De descobrir o segredo
nós não tínhamos vontade
mas, debaixo do castigo
da severa autoridade
acabamos descobrindo
aquela barbaridade
Fomos presos para a mata
o menino procurar
mas nem as suas pegadas
não podemos encontrar
penso que a onça comeu
naquele infeliz lugar
Depois de muito castigo
naquele funesto dia
nos encerraram num quarto
numa horrorosa enxovia
castigo de toda sorte
ali nos aparecia
Dez anos passamos presos
durante os quais nos chegou
toda sorte de martírios
que a crueldade inventou
parece que a providência
com razão nos castigou
Quando tivemos soltura
desprezamos a cidade
andamos de porta em porta
implorando a caridade
é este o motivo justo
da nossa mendicidade
Desde que nós cometemos
aquela tal tirania
a sombra da desventura
anda em nossa companhia
o rico nos nega o pão
nos nega o pobre o bom-dia!
Quando penso no tal crime
eu de mim próprio me acanho
no mundo só vejo abrolhos
tudo me parece estranho
não há em cima da terra
um sofrimento tamanho!
A quem mata injustamente
não há nada que o arrime
pois vejo que o infortúnio
o coração nos comprime
temos que sofrer debaixo
do peso do nosso crime!
Se a morte nos visitasse
por nós seria abraçada
porque dos gozos terrenos
não aspiramos mais nada
até mesmo a nossa vida
nos parece prolongada!
Eis aí a nossa história
cheia de mil dissabores
repleta de provações
castigos dos malfeitores
orvalhada com o pranto
e a nódoa dos horrores!
Disse Abílio: pois agora
gozarão paz e conforto
eu sou o pequeno Abílio
a quem vocês julgam morto
os dois barcos sem destino
vieram parar no porto
Grigório então respondeu-lhe:
meu bom senhor o que dizes?
Não zombes da triste história
dos dois irmãos infelizes
pois trazemos como provas
do castigo as cicatrizes
Tornou Abílio a dizer:
juro com toda certeza
e como prova sincera
e declarada franqueza
olhem aquele objeto
em cima daquela mesa
Grigório viu sobre a mesa
um canivete e então
no cabo estava gravado
Benfenuto de Assunção
foi como ele acreditou
que Abílio era seu irmão
Tanto João como Grigório
por terra ali se prostraram
envergonhados do crime
amargamente choraram
e suplicando perdão
ambos os pés lhe beijaram
Abílio também chorou
com piedade e ternura
dizendo: eu os perdoei
desde a hora de amargura
que me deixaram no monte
no centro da mata escura
Vocês não me devem nada
já padeceram demais
vamos viver recordando
os conselhos paternais
com a proteção divina
e as graças celestiais
João e Grigório aceitaram
esta proteção bondosa
mais tarde com muito gosto
em uma hora ditosa
casaram com as donzelas
irmãs de Maria Rosa
Casou-se João com Dorotéia
Grigório com Madalena
o mundo tornou-se belo
a vida tornou-se amena
e nunca mais relataram
do seu drama a triste cena
Abílio mui jubiloso
sempre usava de franqueza
botou com grande desvelo
os dois irmãos na riqueza
pagando com muito gosto
ingratidão com firmeza
Aqui findo minha história
Na minha rima caipira
Toda cheia de humildade
Onde a viola suspira
No versejar não sou cego
Ilustre leitor entrego
O fruto da minha lira
Por ordem do Deus Divino
Abílio aquele menino
Teve sempre um bom destino
Arrastando a sua cruz
Tinha sobrado valor
Inocente em sua dor
Vendo sempre a seu favor
A Virgem Mãe de Jesus