Alegria

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quarta-feira, 2 de abril de 2014

# 034 - Aparição amorosa - Carlos Drummond de Andrade

Ninguém parece ter notado, mas ontem, pela primeira vez em 34 dias não publicamos o Poema de hoje. Eu estava digitando um poema grandinho quando a Internet caiu e perdi tudo. Depois engrenei a fazer outra coisa e quando vi já tinha passado da meia noite. Peço desculpas a todos. Mas agora vai rs, este é do último livro do poeta, Farewell, palavra que quer dizer adeus mas também passem bem. É um poema fantasmagórico, melancólico, sensual e belíssimo:
Aparição amorosa, Carlos Drummond de Andrade (Nova Reunião, 23 livros de poesia, volume 3)
Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto… o quê? A massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada
Amado ser destruído, porque voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma ideia platônica no espaço
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

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