Alegria

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quarta-feira, 2 de abril de 2014

# 043 - Sortimento de gorras - Luís Gama

Poema de hoje # 043
O poeta Deley de Acari, que ainda pretendemos homenagear, foi quem me apresentou Luís Gama (1830-1882). Sua mãe foi uma negra mina livre que sempre recusou o batismo cristão e participou da Revolta dos Malês na Bahia. Seu pai, um fidalgo português viciado em jogo de cartas e que por conta de dívidas vendeu Luís Gama como escravo com a idade de dez anos. Até os 17 anos ele permanece analfabeto, mas quando aprende a ler foge e vai trabalhar inicialmente na polícia de São Paulo. Vira advogado dos negros cativos: ele mesmo estimava ter libertado 500 escravos da sua condição. Podemos dizer que via a sociedade brasileira de um ângulo absolutamente original de intelectual negro e ex-escravo. Em poesia, escolhe o gênero satírico e publica Primeiras Trovas Satíricas de Getulino, de onde tiramos este poema, onde os racistas hipócritas, os políticos e os acadêmicos, dentre outros, recebem a merecida "homenagem":
SORTIMENTO DE GORRAS, Luís Gama (Luís Gama e suas poesias satíricas)
Seja um sábio o fabricante,
Seja a fábrica mui rica,
Quem carapuças fabrica
Sofre um dissabor constante:
Obra pronta, voa errante,
Feita avulso, e sem medida;
Mas no vôo suspendida,
Por qualquer que lhe apareça,
Lá lhe fica na cabeça,
Té as orelhas metidas.
Faustino Xavier de Novais
(para gente de grande tom)
Se o grosseiro alveitar ou charlatão
Entre nós se proclama sabichão;
E, com cartas compradas na Alemanha,
Por anil nos impinge ipecacuanha;
Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma ave de rapina;
E num dia, se errando na receita,
Pratica no mortal cura perfeita;
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecendo os negrinhos seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E curvos à mania que domina,
Desprezam a vovó que é preta-mina: —
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se o Governo do Império Brasileiro,
Faz coisas de espantar o mundo inteiro,
Transcendendo o Autor da geração,
O jumento transforma em sor Barão;
Se o estúpido matuto, apatetado,
Idolatra o papel de mascarado;
E fazendo-se o lorpa deputado,
N’Assembléia vai dar seu — apolhado!
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois tudo no Brasil é raridade!
Se impera no Brasil o patronato,
Fazendo que o Camelo seja Gato,
Levando o seu domínio a ponto tal,
Que torna em sapiente o animal;
Se deslustram honrosos pergaminhos
Patetas que nem servem p’ra meirinhos
E que sendo formados Bacharéis,
Sabem menos do que pecos bedéis:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!
Se temos Deputados, Senadores,
Bons Ministros, e outros chuchadores;
Que se aferram às tetas da Nação
Com mais sanha que o Tigre, ou que o Leão;
Se já temos calçados — mac-lama,
Novidade que esfalfa a voz da Fama,
Blasonando as gazetas — que há progresso,
Quando tudo caminho p’ro regresso:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se contamos vadios empregados,
Porque são de potências afilhados,
E sucumbe, à matroca, abandonado,
O homem de critério, que é honrado;
Se temos militares de trapaça,
Que da guerra jamais viram fumaça,
Mas que empolgam chistosos ordenados,
Que ao povo, sem sentir, são arrancados:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se faz oposição o Deputado,
Com discurso medonho, enfarruscado;
E pilhado a maminha da lambança,
Discrepa do papel, e faz mudança;
Se esperto capadócio ou maganão,
Alcança de um jornal a redação,
E com quanto não passe de um birbante,
Vai fisgando o metal aurissonante:
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se a guarda que se diz — Nacional,
Também tem caixa-pia, ou musical,
E da qual dinheiro se evapora,
Como o — Mal — da boceta de Pandora;
Se depois por chamar nova pitança,
Se depois se conserva a — Esperança;
E nisto resmungando o cidadão
Lá vai ter ao calvário da prisão;
Não te espantes, ó Leitor, da pepineira,
Pois que tudo no Brasil é chuchadeira!
Se temos majestosas Faculdades,
Onde imperam egrégias potestades,
E, apesar das luzes dos mentores,
Os burregos também saem Doutores;
Se varões de preclara inteligência,
Animam a defender a decadência,
E a Pátria sepultando em vil desdouro,
Perjuram como Judas — só por ouro:
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
Se a Lei fundamental — Constipação,
Faz papel de falaz camaleão,
E surgindo no tempo de eleições,
Aos patetas ilude, aos toleirões;
Se luzidos Ministros, d’alta escolha,
Com jeito, também mascam grossa rolha;
E clamando que — são independentes —,
Em segredo recebem bons presentes:
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
Se a Justiça, por ter olhos vendados,
É vendida, por certos Magistrados,
Que o pudor aferrando na gaveta,
Sustentam — que o Direito é pura peta;
E se os altos poderes sociais,
Toleram estas cenas imorais;
Se não mente o rifão, já mui sabido:
Ladrão que muito furta é protegido —
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
Se ardente campeão da liberdade,
Apregoa dos povos a igualdade,
Libelos escrevendo formidáveis,
Com frases de peçonha impenetráveis;
Já do Céu perscrutando alta eminência
Abandona os troféus da inteligência;
Ao som d’aragem se curva, qual vilão,
O nome vende, a glória, a posição:
É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,
Onde possa empantufar a larga pança!
E se eu, que amigo sou da patuscada,
Pespego no Leitor esta maçada;
Que já sendo avezado ao sofrimento,
Bonachão se tem feito pachorrento;
Se por mais que me esforce contra o vício
Desmontar não consigo o artifício;
E quebrando a cabeça do Leitor
De um tarelo não passo, ou falador;
É que tudo que não cheira a pepineira
Logo tacham de maçante frioleira.

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