Alegria

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quarta-feira, 2 de abril de 2014

# 023 - Alcachofra - Angélica Freitas



Poema de hoje # 023
A primeira vez que ouvi falar dela foi numa coluna do sempre inteligenteFrancisco Bosco. Ao ler seus poemas me defrontei com uma sensação de estranhamento: havia ali uma crueza brutal que era resultado de uma intenção artística e não de um primitivismo. Talvez porque ela esteja tratando de coisas tão centrais como os papéis e estereótipos que são atribuídos a homens e mulheres a sua escrita seja tão direta. Mas não prescinde de humor, como neste poema em que amélia (aquela mesmo) foge com a mulher barbada...
Alcachofra, Angélica Freitas (Um útero é do tamanho de um punho)
amélia que era a mulher de verdade
fugiu com a mulher barbada
barbaridade
foram morar num pequeno barraco
às margens do rio arroio macaco
em pedra lascada, rs
primeiro a solidão foi imensa
as duas não tinham visitas
nem televisor
passavam os dias se catando
pois tinham pegado piolho
e havia pulgas no lugar
"somos livres" dizia amélia
e se atirava no sofá
e suspirava
a mulher barbada também suspirava
e de tanto suspirar
já estava desesperada
"gostavas mais como era antes?"
perguntou amélia, desconfiada
temia que a outra
pensasse no circo
pois agora passavam os dias
só as duas no barraco
a mulher barbada sempre fora
de poucas e preciosas palavras
quase nem falava
assentia com a cabeça, balançava-a
se não concordava, como os simples
ou os que perderam a língua
a mulher barbada simplesmente não sentia
aquela necessidade de discutir
cada coisa do dia a dia
e amélia ficava grilada, então
além das pulgas e dos piolhos
era inseto pra caramba
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"vivo com uma desconhecida"
disse amélia, certo dia, no barraco
"eu vou comprar cigarros"
disse a mulher barbada
"tu não vais a lugar nenhum"
disse amélia, "senta a tua bunda
peluda no sofá
que eu quero conversar"
a mulher barbada bufou
mas fez o que mandou a companheira
amélia contou de sua infância
em pinta preta, rs
e como era a garota mais cobiçada
porque não tinha a menor vaidade
e havia uns cinco rapazes pelo menos
que pensavam desposá-la
porque era conhecido o seu custo-benefício
muito mais quilômetro por litro
etc etc etc
"agora me conta de ti"
ti ti ti
ficou ecoando a palavra
que a mulher barbada
mais detestava
(depois de tu)
"e se essa louca
for a minha dalila?
o que é que eu faço?
pra onde é que eu corro?"
"sabe uma coisa que é boa pro estômago
é chá de alcachofra"
foi o que a mulher barbada ouviu
sair de sua boca
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misteriosos pontinhos pretos
invadiram o espaço aéreo
dos olhos de amélia
e amélia disse: "chega, tu não me valorizas"
e ainda "levanta essa bunda peluda do sofá,
faz alguma coisa"
então a mulher barbada levantou a sua bunda peluda
do sofá e fez uma coisa: pegou um navio de bandeira grega
o kombustaun spontanya, e zarpou para servir
na marinha, virou o cabo seraferydo
dele ou dela não se teve mais notícia
amélia voltou para pinta preta
onde foi perdoa... promovi... esfaquea...
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