Alegria

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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

# 071 - SAMIR - Felipe Fortuna, do livro O mundo à solta

Felipe Fortuna é poeta e diplomata. Neste poema do livro O mundo à solta, ele mostra que é capaz de imaginar o inimaginável

SAMIR

Aquele garoto que vê
o mercado ficar cheio
se chama Samir. Ele crê
em Deus de todas as maneiras:
como pássaro brilhante, como água
fresca entre pedras, como o assovio
do vento deserto.
Mas agora desmembrado
e a cabeça confundida aos estilhaços
Samir não vê.
Sobre o mercado
a bomba apontou o inimigo
e levou quem mais podia:
desenrolou-se um tapete até o meio
subitamente a conversa cessou
e os órgãos vitais se espalharam
no bazar já tão repleto,
algumas peças em liquidação.
A mãe de Samir entra
entre ruínas e vê.
Vê fumaça, vê escombros
o apocalipse ali, louvado Alá,
Aos gritos ela vê e vê
que os corpos são dos outros
não são pedaços de Samir.

A perna de Samir
pode estar sob duas colunas
e a mãe não vê
e por isso grita também.
O filho
que corria no mercado
entre algibeiras guitarras narguilés
frutos panos jóias e sedas
paralisou os negócios,
morreu junto com os outros
sem demanda e sem oferta,
sem saber, em meio à guerra,
como e por que barganhar.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

# 070 - Brad Pitt ao meio-dia - Tainá Rei

Poema de hoje # 070
A FLUPP, que primeiramente era Festa Literária das UPP's e atualmente é a Festa Literária das Periferias, tendo chegado à periferia de Curitiba, Salvador (Alagados) e em breve São Paulo (Cooperifa) e Rio (Maré), tem feito um trabalho de garimpagem de novos autores, de prosa e poesia. Um deles é a Tainá Rei, 20 anos, que foi publicada no livro de poemas da FlupPensa:
Brad Pitt ao meio-dia (Tainá Rei, Poesias FlupPensa, Aeroplano)
Mesmo que eu não seja a garota da primeira sessão de Clube da
Luta, Tyler continua fazendo sentido como nunca fez
para meus contemporâneos que seguiram como estagiários em
engenharia, direito ou economia e penduram os violões, os co-
lhões, na parede decorando o quarto.
Não queremos eu e Tyler afirmar nossa superioridade sobre
você - a conservaremos intacta enquanto em silêncio -, mas
para nós a rotina sanitária do autoaperfeiçoamento alveja o yin-
yang a tal brancura
que não constrói um humor forte o suficiente para suportar o
que vem pela frente.
Depois de tantas transas de uma só noite, você acaba se repetin-
do ou pior esbarra com um deles ao meio-dia.
Teu jeans já não te aceita tão facilmente e como se você comesse
um bolo inteiro por acidente
um amigo te alerta sobre o horror de sua adiposidade
Aos 20 anos a gente diz que é por causa da idade.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

# 069 - Poema 9 - Madeviaca (Poetas-Santos de Xiva, séculos X-XII) - 31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari

Poema de hoje # 069
Poema 9, Madeviaca (Poetas-Santos de Xiva, séculos X-XII) - 31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari
você pode empalmar
o dinheiro da mão
mas pode confiscar
a glória do corpo?
você pode reduzir
a tiras um véu
mas e a nudez do nada
que me cobre e vela?
para a menina sem-vergonha
que se veste da luz da manhã
do senhor branco-jasmim
para que servem roupa e jóias?

# 068 - Visitas inesperadas - Anna Kaum

Poema de hoje # 068
Não sei quase nada sobre Anna Kaum: não sei onde mora, o que faz da vida ou o que a vida faz com ela. Mas sei que ela é a mais assídua poeta a frequentar este humilde cantinho virtual. Além de sempre postar poesia da melhor qualidade, Anna também contribui com seus poemas. Foi difícil escolher um, pois além de bons são muito diferentes. Mas eu optei por este aqui, pois o bom humor é sempre bem vindo.
Visitas inesperadas, Anna Kaum
Ás vezes,quando a tarde cai e a chuva fina canta no telhado
Solidão vem me visitar
Ela chega mansa,assim como quem não quer nada
Mas num instante está lá,sentada,bem no meio da sala
Pés em cima da mesa,almofadas a lhe acomodar a cabeça
Dependendo do dia,tem a pachorra de me pedir uma coberta
Diz que não gosta de vento encanado.
Fica lá a revirar amores antigos e sussurrar tristezas
Gosta de fotos velhas.Diz que eu menina era mais bonita,pergunta dos parentes mortos,xinga o tempo que passa e nem liga pros nossos sonhos rasgados.
Outro dia cismou que queria ouvir um disco. Onde diabos eu acharia uma vitrola?
Tem cada ideia essa louca
De repente se levanta e dana a andar pelos cômodos vazios da casa
Pode esperar que lá vem choradeira
Quer beber uísque Escocês, reclama que cerveja não combina com ela.
“- Solidão que se preze bebe destilado importado!” Sentencia!
A tarde se cansa,a noite chega e ela lá,com pose de atriz de cinema americano na década de 40
É nessa hora que ela fica pior,piradinha a coitada!
Suspira pela cama vazia e me diz que sou burra,que grito muito e nunca penso antes de falar
“-Vais morrer velha,feia e sozinha!” Berra no espelho
Não aceita,a mandona,que eu ache namorado um saco;é que eles começam lindos,mas acabam sempre uns sapos!!
Depois se acalma e canta ouvindo Maysa.
Pelo menos tem bom gosto.
Teve um dia,acho que já estava meio de pilequinho,que resolveu se emperiquitar toda
Vestido de brilhos,sapato de salto,colares e uma maquiagem toda borrocada.
Essa criatura é doida,eu dei foi risada!!
Andava para lá e para cá, toda trabalhada na perua empoada.
Lá pelo meio da madrugada,já meio sonada,acho que enjoa daquilo tudo e se manda,
tem vezes que sai e nem se despede,quando dou por mim já foi, ganhou a rua. Meio louca,meio santa,lá vai ela porta a fora uivando pra lua...
É bem engraçada essa tal de Solidão,todo mundo reclama,foge,diz que não,mas eu,que perco o amigo mas não a piada, bem que me divirto com a danada!!
Anna Kaum

quarta-feira, 9 de abril de 2014

# 067 - Remora - Rafael Zacca - Blog Canções de Amor e Guerra

Poema de hoje # 067

Rafael Zacca alimenta-se da rica tabelinha entre a História e a Filosofia. É, antes de tudo, poeta:

Remora, Rafael Zacca (Blog Canções de Amor e Guerra)

Retorno, e a morada
é gruta ancestral.

Tudo é começo,
matéria-ruína dos primeiros
versos. Porrete em cabeça
de tigre. Dente de marfim
arando a terra. Pele de bicho
sobre a fala.

(Reverso. Tudo será
o meu último salto.
O dia do degelo, o
lampejo azul da Terra.)

Retorno, e não há casa.
Sou todo morada.

terça-feira, 8 de abril de 2014

# 066 - Já que voltei à Provença (fragmento) - Vidal (Trovador sécs. XII e XIII) - Tradução de Décio Pignatari

Poema de hoje # 066

Já que voltei à Provença (fragmento) - Vidal (Trovador sécs. XII e XIII) (31 Poetas, 214 Poemas - Décio Pignatari)

Já que voltei à Provença,
Agrado ao seu coração:
Faço esta alegre canção,
Alegre, por recompensa,
Pois que servir e louvar
As graças de um bom senhor
É dar valor ao valor
E algum valor esperar,
Por valoroso esforçar.

Sem pecar - fiz penitência;
Sem errar - achei perdão
E, no nada - inspiração;
No rancor - benevolência,
Alegria - no chorar,
No amor - doce sabor
E, no medo, destemor.
Por perder, eu sei ganhar
E, vencido, dominar.

domingo, 6 de abril de 2014

# 065 - ando pisando sobre minha sombra - Annita Costa Malufe

Poema de hoje # 065

ando pisando sobre minha sombra, Annita Costa Malufe  (Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea)

ando pisando sobre minha sombra
debaixo dela
são as pedras que caminham
as pedras em correnteza
algo que desliza sob meus pés
são as pedras que caminham e não eu
não sou eu quem estou aqui não sou
quem desliza pelas calçadas repletas
não sou exatamente o que poderia ser
debaixo dos pés são as pedras que caminham
que traçam o caminho tênue esgarçado
em que o dia se esgarça o sol se esgarça
aquece a calçada queima as pedras da calçada
ando pisando sobre minha sombra o sol por detrás
pisando em um esquecimento qualquer
e debaixo de minha sombra são as pedras
que escorrem deslizam traçam uma correnteza
na qual sigo em sentido contrário
digo "vou" mas não sou eu quem vou
não sou exatamente este corpo que pisa
que projeta esta sombra não sou exatamente o que
se supõe momentaneamente que seja